andré barata

“O jogo da filosofia é sempre um jogo insensato. Supor, porém, que não fosse absolutamente sério seria um ultraje. Se não fosse subversivo, irritante e insuportável, Sócrates teria sido simplesmente ridículo”.

A oportunidade para mais melhores universidades

 

Tardando políticas ativas e estáveis que discriminem positivamente o Interior face ao Litoral, torna-se incompreensível a promoção de políticas penalizadoras, que agravam alguns dos piores desequilíbrios deste país.

A nova lei do emprego científico corrige, com determinação, uma situação que não pode prolongar-se. A investigação científica nacional não pode assentar no trabalho de investigadores sem contratos de trabalho e sem qualquer perspectiva de carreira. E o abuso foi do Estado, por ter permitido que uma boa política de bolsas de investigação – decisiva para um país mal equipado de recursos humanos qualificados (com grande mérito para Mariano Gago) – se tornasse, ao cabo de duas décadas, numa má política de emprego precário para os investigadores altamente qualificados entretanto formados.

Como a praga dos falsos recibos verdes, há milhares de falsos bolseiros de investigação e de falsos professores convidados no sistema científico e universitário português. No caso dos bolseiros, a responsabilidade do Estado é acrescida, porque é ao Estado que cabe atribuir as bolsas através da sua Fundação para a Ciência e Tecnologia. Providenciar rendimento de sustento aos bolseiros não eximia o Estado de responsabilidades diante de uma situação de crescente e indevida exploração. Ter uma política de formação científica não o eximia de ter também uma política de emprego científico.

Erradicar a precariedade é um desígnio de primeira ordem, de coerência e modernidade a que o país, e o Estado em primeiro lugar, não se pode furtar. E com o qual as universidades públicas devem estar fortemente comprometidas na parte que lhes toca, mesmo que para isso tenham de aceitar algumas imposições na gestão de recursos humanos. São, ao fim e ao cabo, instituições públicas, especialmente vinculadas ao interesse nacional.

Mas solucionar a precariedade deveria também ser oportunidade para resolver, em vez de aprofundar, outro desequilíbrio igualmente profundo, persistente e corrosivo do sistema universitário, que não pode ser ignorado: o do subfinanciamento crónico das universidades do Interior.

É normal que as universidades com menos dotação orçamental sejam as do Interior, por disporem de menos quadros e prestarem serviços a menos alunos. Mas não é nem normal nem aceitável que, proporcionalmente, feita a regra de três simples, sejam ainda as universidades do Interior as menos financiadas – incapazes de promover contratações, progressões, enfim tudo o que precisam para se firmarem como melhores universidades. Sondados os motivos para este desequilíbrio somos remetidos para uma justificação que não faz qualquer sentido: nas transferências do Orçamento de Estado para as instituições de ensino superior pesa sobretudo o histórico de transferências. Como é possível que prevaleçam “históricos”? Que não haja de facto uma fórmula que possa ser apresentada e cuja aplicação transparente possa ser publicamente escrutinável?

Passam dois erros de governação aqui. O de favorecer a opacidade que permite que os excessos do passado se tornem prémios futuros, enquanto se castiga a parcimónia e a responsabilidade com nenhuma retribuição ou reconhecimento. E o de prejudicar a equidade, comparável aliás à situação dos falsos bolseiros e dos falsos professores convidados. Tal como estes tiveram o azar de chegar mais tarde ao sistema, também as universidades mais jovens chegaram tarde à mesa que reparte o orçamento. Caso agravado quando, além de mais jovens, são universidades do Interior.

Tardando políticas activas e estáveis que discriminem positivamente o Interior face ao Litoral, torna-se incompreensível que sejam promovidas políticas penalizadoras, que redundam em discriminação negativa e agravam alguns dos piores desequilíbrios deste país. Isto é válido para a cobrança de portagens nas auto-estradas para o Interior – com um efeito devastador na competitividade de grande parte das empresas do Interior –, como é válido para as universidades. Apesar da sua estreita figura, Portugal consegue cavar entre Litoral e Interior a distância de dois extremos de um continente, em que o despovoamento se torna a pior arma democrática: faltam votantes para fazer prevalecer o interesse colectivo.

A nova lei do emprego científico é acompanhada de garantias financeiras que implicarão grandes transferências extraordinárias para o sistema universitário português. Só que na sua esmagadora maioria serão transferências para as universidades do Litoral, onde estão falsamente empregados nove décimos ou mais dos bolseiros de pós-doc que beneficiarão do direito a um contrato de trabalho. Isto é um problema. Podemos dizer que é uma “inevitabilidade” todos estes bolseiros virem a ser contratados no Litoral, mas o que  traduz de facto é um sério agravamento da assimetria territorial, há muito sentida em termos de financiamento e que exige atenção da parte da governação.

Razoável e justo, se aceites como genuínos objectivos a coesão territorial, o não despovoamento e a igualdade de oportunidades territorial, seria as universidades do Interior não se verem, como tem sucedido até agora, orçamentalmente prejudicadas face às suas congéneres do Litoral. O que torna indispensável uma fórmula de financiamento, até agora inexistente. E isto é só cumprir os mínimos.

Num momento em que a aplicação do DL 57/2016 revisto vai produzir significativas transformações nas universidades, não podemos perder a oportunidade de prosseguir uma reforma que dote o país de mais melhores universidades. Depois da desigualdade da precariedade, a desigualdade no território.

 

(Artigo publicado no Jornal Económico, 24 de Agosto de 2017, http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/a-oportunidade-para-mais-melhores-universidades-200404)

Escrito por André Barata na Quinta Setembro 21, 2017
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