Lutar pela igualdade de género não deve ser apenas lutar por uma igualdade maior entre homens e mulheres, mas também por libertar ambos dos seus papéis.
Celebrou-se ontem o dia em que se assinala a luta de todos os outros dias pela igualdade de género. O problema da desigualdade baseada em critérios de género, que persiste nas nossas sociedades, é muito profundo. A própria diferença de género entre masculino e feminino, sendo uma diferença acima de tudo cultural, traz em si o aspecto político de implicar a presunção de poder que um género tem sobre o outro. Disto não faltam evidências em toda a história da cultura ocidental, e nem a psicanálise de Freud se livra, ao naturalizar nas meninas uma inveja do pénis sem se perguntar pela determinação cultural de um tal sentimento.
A marcação política da diferença de género como a diferença de quem manda neste mundo tem exemplo cabal no fenómeno da importunação sexual, vulgo piropo. Nele, o sexo é o pretexto e a dominação o motivo, não o contrário. Por isso, quase sempre o piropo dirigido a uma mulher é uma performance social – quem manda o piropo está a assinalar o seu papel social, assinalando também o papel social do seu alvo. O piropo de dominação existe para lembrar à mulher que, no espaço público, antes de ser cidadã, ela é mulher, logo, é sujeito político na posição sujeitada. Este tipo de piropo está para ela como a autoridade está para um cidadão e está para todos como a memória da forma mais arcaica e originária do “eu mando, tu sujeitas-te”, modelo arquetípico da relação política concebida como dominação.
Ao contrário dos homens, que tiveram de se tornar cidadãos para tolerarem ser sujeitos de um soberano, as mulheres já o eram relativamente ao soberano “homem”, por condição imposta à força. A dominação sexual, que tem no piropo a sua peça mínima, é o pré-contrato político da mulher. Na realidade, a “mulher” visada hoje no piropo de dominação é o vestígio ainda vivo da categoria política “mulher” que também foram as mulheres espólio de guerra.
E por que razão as mulheres raramente chegam à política – uma apenas em cada quatro ou cinco militantes de partidos, uma apenas em cada quatro deputados, uma apenas por uma dúzia de presidentes de câmara? Há razões de diversa ordem, aliás habitualmente mencionadas. Razões operacionais: como, se há uma família para cuidar? Razões tradicionais: os interesses das mulheres não se situariam, supostamente, tanto na esfera pública quanto na esfera da vida privada. Razões corporativas: os homens na política fazem redes entre eles, fechando-se em clubes a que dificultam o acesso de mulheres. Razões estas que se solidarizam umas com as outras. Mas a razão de fundo é outra.
O problema não está apenas no acesso à política, mas naquilo a que se acede acedendo à política: uma realidade organizada pela diferença de género. Na mesma medida em que géneros estão politicamente determinados, a política está como que “generizada”. A diferença entre público e privado é uma construção “generizada”, uma construção de acordo com a qual o sujeito no espaço público, com características subjectivas e subjectivadoras, dotado de vontade e capacidade de acção, corresponde à masculinidade. E de acordo com a qual a mulher protagoniza o espaço privado, já não na condição de sujeito, mas de objecto no espaço privado, objecto privado, objecto de posse, primeira propriedade entre todas as propriedades, propriedade que se sente confortável entre as outras propriedades.
Razões culturais, linguísticas, morais, mas nunca genuinamente naturais, explicam porque a prática política parece tão feita para homens como inóspita para mulheres. E porque é que, em contrapartida, é esperado da mulher um protagonismo no espaço privado, como ao homem é esperado no espaço público, numa divisão do trabalho social por critérios de género.
Para confirmar que assim é vale a pena considerar a língua que usamos. Por exemplo, os nomes dos homens no espaço público são muito mais vezes apelidos e nomes de família, nomes públicos, do que nomes próprios, resultado de escolhas privadas, nomes privados portanto. Com as mulheres, sucede exactamente o contrário, mais vezes tratadas pelo nome próprio do que pelo apelido que parece fugir-lhes mesmo no espaço público. A língua e os seus usos reflectem ainda uma outra diferença de peso entre géneros: as mulheres não dispõem nunca do universal. Por convenção claro, mas convenções são escolhidas em detrimento de outras. E tentar mudá-las pode suscitar reacções de violento debate, como testemunhámos há não muito tempo quando se tentou alterar a designação “cartão de cidadão”. Resumindo, a língua é mais uma instituição – importantíssima, claro – que com outras conserva e reproduz uma divisão de papéis sociais.
Se o masculino encontra a sua objectividade na sua capacidade de se subjectivar singularmente, a mulher encontra a sua subjectividade na sua capacidade de se objectivar singularmente entre objectos. O masculino não é apenas hegemónico no espaço público. Ele é o modelo e arquétipo do próprio espaço público. Paralelamente, a mulher não é apenas o fundo do espaço privado. Ele é o modelo e arquétipo do privado.
Então, lutar pela igualdade de género não deve ser apenas lutar por uma igualdade maior entre homens e mulheres, mas também por libertar ambos dos seus papéis. Não se trata “apenas” de trazer as mulheres à política, mas de pensar a política diferentemente. Não no sentido de que haja uma maneira de fazer política por mulheres e outra por homens, ou de projectar uma política cheia de feminilidades em contraste com uma política cheia de masculinidades. Trata-se antes de transformar um entendimento da política, historicamente construído sob uma lógica de dominação definida pela diferença entre masculino e feminino.
Com efeito, a política apresenta-se competitiva, agressiva, patriarcal e assume-se então que é masculina, como se a masculinidade não tivesse sido, tanto quanto a política, representada para ser dessa maneira. Simone de Beauvoir disse: “On ne naît pas femme, on le devient.” Mas é exactamente a mesma coisa para os homens. A política não é mais feita à medida dos homens do que os homens são feitos à medida da política. Ambos – política e masculinidade – fazem parte de uma construção que não é indiferente a uma organização social. Na verdade, os homens não têm de ser masculinos como se representa a masculinidade do seu género, nem a política tem de ser masculina como é sua representação dominante.
Mas se não tem de ser assim, que outra coisa pode ser a política? Um bom programa seria opor à política da conquista e da conservação, posse, fronteira e património, que para alguns define a própria actividade política, uma outra, da inclusão, da partilha e do fazer comunidades. Se as mulheres são uma possibilidade de mudança de paradigma não é por nenhum aspecto de natureza, nem por nenhum aspecto de feminilidade, mas pelo lugar a que foram votadas em toda esta história de papéis sociais atribuídos. A sua é a primeira e mais transversal de todas as desigualdades, que serviu e serve de modelo a todas as outras, a arqui-desigualdade, que confere inteligibilidade à própria prática da exclusão. Não um pecado, mas uma desigualdade original.
(Publicado no Jornal Económico, 9/03/2017, http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/o-genero-da-politica-131085)