andré barata

“O jogo da filosofia é sempre um jogo insensato. Supor, porém, que não fosse absolutamente sério seria um ultraje. Se não fosse subversivo, irritante e insuportável, Sócrates teria sido simplesmente ridículo”.

O professor Ventura ou a desventura dos professores

 

Num quadro de pós-verdade, os professores estão condenados a fazer outra coisa: a sala de aula tornar-se-á uma tribuna para credos. E os conceitos prestarão vassalagem aos preconceitos.

Compreende-se e até se concorda que era altura do PSD assumir com coragem uma viragem política.  O insucesso do programa económico, social e político da austeridade ficou mais que demonstrado no governo Passos Coelho e pelo preço de um tremendo e inútil sofrimento social e de uma opressão política que chegou a levar muitas centenas de milhar às ruas, em protesto. O sucesso que se seguiu, no Governo Costa, deixou ainda mais claro que a austeridade era uma programa que tinha de ser posto na gaveta e uma palavra que tinha de ser devolvida a usos mais nobres. Por isso viria tarde esta aparente decisão do PSD de mudar de estratégia e deixar cair o seu cavalo de batalha dos últimos seis anos.

Compreende-se menos que a liderança do PSD não seja, tal como a austeridade, posta na gaveta. Em política, os protagonistas definem-se pelos seus actos políticos e Passos Coelho foi, e nunca deixará de ser, o nome político da austeridade em Portugal. Se quiser ser outra coisa, cá estaremos muitos para o lembrar que isso não é assim tão fácil. É o preço a pagar pelo enorme privilégio do protagonismo político de que pôde gozar.

O que não se compreende e não se pode aceitar sem crítica é que o PSD, através de uma liderança que sobrevive para lá do seu tempo, escolha como nova estratégia uma trumpização da sua oposição ao Governo e da sua participação em actos eleitorais. Sempre fez parte da identidade do PSD um lado popular, um tanto pato bravo, mas compreensível face à compleição mais burguesa e funcionalista do PS, como se, um tanto enviesadamente, o PSD estivesse para o PS como a sociedade civil para o Estado.

Mas esta deriva populista de partido encarniçado, exaltado, que quer, “custe o que custar”, abater um Governo? Ora imprecando sobre a tragédia de Pedrógão, ora em seguida pelo assalto a Tancos? Ora de novo com o rescaldo de Pedrógão, ora mantendo o apoio a um candidato vergonhoso às próximas eleições autárquicas? Um candidato que diz coisas racistas e xenófobas a propósito da etnia cigana e dos povos muçulmanos, que defende a reintrodução da prisão perpétua e pretende fazer da polícia municipal, caso seja eleito, uma espécie de brigada de vigilância? Com pequenas alterações de contexto, este programa lembra as aleivosias de Trump sobre mexicanos, endurecimento de penas e políticas de força bem demonstrada publicamente.

Mas esse nunca foi o programa do PSD, nem mesmo o do CDS. Na verdade, é uma porta a escancarar-se perigosamente a agendas de castigo e segregação que a sociedade portuguesa recusou há muito com tanto de lucidez como de determinação. O PNR deve estar a esfregar as mãos de contentamento. Incrível é que Passos Coelho possa fazer isto com o pretexto de não deixar cair um dos seus.

O caso André Ventura exemplifica outros problemas que vão além do PSD e além mesmo de todo o espectro partidário. É um professor universitário, com uma formação sólida que, no entanto, não se poupa a veicular explicações racistas para problemas sociais. Tudo na sua formação diria que manipula argumentos para obter conclusões em que não é crível que acredite. Esta falta de reverência pela verdade, como pela acuidade da argumentação, instrumentalizando aquela e bestializando esta, é um sintoma de pós-verdade, que não condiz com ser professor. E este é também um problema do nosso tempo que deve ser encarado de frente.

A desvalorização social da profissão docente tem muitos anos, antecâmara que já deixava adivinhar que, com ela, se seguiria uma desvalorização social da verdade, hoje cada vez mas instrumentalizada e manipulada sem entraves. É uma desvalorização epistemológica, que nega o que por princípio deveria ser um professor. E para que o crime seja perfeito torna-se expectável que vejamos  professores a fazê-lo.

Mas como podem os professores resistir à pretensão crescente de que toda a opinião valha o mesmo, de que a opinião científica seja apenas mais uma opinião, de que as outras opiniões sejam umas oprimidas que merecem levar a melhor porque o que conta não são verdades pretensiosa e arrogantemente etiquetadas de científicas, mas aquilo em que uma pessoa crê?

O problema não é novo. A exigência de que o criacionismo seja ensinado em pé de igualdade com a teoria da evolução e o neodarwinismo nas aulas de biologia é já um clássico. A novidade está em esta falsa controvérsia replicar-se em muitas outras, constituindo um problema demasiado generalizado para não ameaçar a própria autoridade do ensino oficial. No mês passado, Erdogan baniu do ensino médio turco a menção à teoria da evolução. Por cá, ainda há dias assistimos, a propósito de uma lamentável entrevista do cirurgião pediátrico Gentil Martins, a uma horda de defensores da ideia de que a homossexualidade é uma patologia — e que certamente ansiarão por ver as suas preocupações reflectidas no ensino. No essencial, por razões ideológicas que desprezam as razões do saber constituído ao ponto de o quererem tutelado e vigiado.

A politização da verdade científica é bem um sintoma de pós-verdade, que a substitui por um sucedâneo – já não uma verdade que se descubra, mas antes uma verdade que se conquista, e sobretudo a outros. Por isso, num quadro de pós-verdade, os professores estão condenados a fazer outra coisa – a sala de aula tornar-se-á uma tribuna, se não mesmo um púlpito, para credos. E os conceitos prestarão vassalagem aos preconceitos.

A pós-verdade, generalizando-se, dará cabo da profissão em que não se poderia dispor de outra autoridade senão o conhecimento. Essa humildade era a sua nobreza. Mas se todas as opiniões valem o mesmo, como há-de responder o professor a quem diz que a homossexualidade é uma aberração ou que o criacionismo não é mais controverso do que o evolucionismo? Pode fazer um grande discurso, armar-se de recursos retóricos, mas o ponto é que não é isso que se devia esperar de um professor. Os professores não são políticos nem profetas. Ensinam o que estudaram. Alguns também investigam. Mas, basicamente, ensinam, garantem a conservação e transmissão, de geração em geração, do conhecimento.

A este respeito, recomenda-se um filme do realizador russo Kirill Serebrennikov. Chama-se ‘O estudante’, ou melhor, um trocadilho em russo entre estudante e mártir — ‘(M)uchenik’ —, mas realmente devia antes chamar-se ‘A professora’. É um filme perturbador que leva uma professora de biologia ao desespero, de tal forma é descalça da autoridade do conhecimento por todos em redor. Na edição de Cannes de 2016, o filme venceu o prémio François Chalais, atribuído ao filme que melhor defende os valores do jornalismo. São os mesmos valores de que não podemos ficar descalços.

 

(Artigo publicado no Jornal Económico, 27 de Julho de 2017, http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/o-professor-ventura-ou-a-desventura-dos-professores-190938)

Escrito por André Barata na Quinta Setembro 21, 2017
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