Resposta a "Uma péssima ideia", de João Rodrigues
Antes de mais, gratos pelos comentários do João Rodrigues ao nosso artigo de ontem, que permitem uma discussão em bases melhores, potenciando-se um debate aberto e cordato. Respondemos a cada um dos seus 6 comentários:
1/ Não basta reconhecer as motivações neoliberais para um RBI. Essas estão assumidas pelos autores do artigo e pela maioria dos não neoliberais que nutrem simpatia política por algumas versões do RBI. Alinhando no jogo da troca de cromos, há outras motivações muito distantes do neoliberalismo, imperialismo, etc. que deveriam ser expostas — Varoufakis e Stieglitz por exemplo. É, pois, preciso reconhecer ainda as motivações emancipatórias para um RBI, que têm uma longa tradição a que o próprio João Rodrigues alude no final do seu texto: a tradição libertária de esquerda (anarquista, anarquizante, mutualista). Mas também que existem autores de forte influência neo-marxista que defendem versões de implementação de RBI, como E.Olin Wright, Guy Standing ou Paul Mason, só para citar alguns. Não deverão estar, certamente, todos a ficar malucos.
2/ Não basta elencar que a Alemanha e a Islândia muito desenvolvidas tem baixas taxas de desemprego e que a Grécia, pelo contrário, por ter uma grande taxa de desemprego deveria estar muito desenvolvida teconologicamente. Julgaríamos escusado lembrar as razões por demais conhecidas por que a Grécia se encontra diante de semelhante taxa de desemprego, razões a que não é indiferente a baixa taxa de desemprego na Alemanha. Um mercado europeu liberalizado serve a produção alemã, uma corda na garganta chamada austeridade destruiu a economia grega. O caso da Islândia é somente o caso do país com a mais baixa densidade populacional da Europa. Esta e outras características fazem da Islândia um país muito singular cujo exemplo não pode ser generalizável. Portanto, estes não são bons argumentos. Na verdade, até estão bastante longe disso. Bons argumentos com base em evidência empírica são os da Organização Internacional do Trabalho, que, em 2015, reportava uma tendência para crescimento global do desemprego.
Mas, estes são elementos secundários que apenas servem para vencer discussões onde nós apenas queremos lançá-la. Importa mais analisar a seguinte observação do João Rodrigues:
«Hoje, o essencial da inovação tecnológica, que nunca pode ser desligada das relações sociais prevalecentes, serve para reduzir salários e aumentar o controlo sobre os trabalhadores, tendo um notório enviesamento de classe. Temos de mudar de regime, mas para isso não precisamos do RBI. Precisamos de falar, por exemplo, sobre desglobalização.»
A nossa tese é ligeiramente, mas muito substancialmente, diferente. Formulamo-la a partir de uma reformulação do texto citado:
Hoje, o essencial da inovação tecnológica, que nunca pode ser desligada das relações sociais prevalecentes, serve para eliminar postos de trabalhar e impedir qualquer mecanismo de controlo da produção por parte de trabalhadores, tendo um notório enviesamento de classe. Temos de mudar de regime para o qual outro RBI pode ser uma política emancipatória e redistributiva importante mas não a única.
O que acontece com muitos economistas de formação marxista tradicional é estarem focados na ideia de que a dominação se faz necessariamente pela exploração do trabalhador. Infelizmente, a realidade que temos de enfrentar é pior: a dominação não precisa da exploração do trabalhador para se exercer, até pode preferir dispensá-la a troco de uma dominação mais higiénica que a automação e a economia digital vai proporcionando. É esta nova oportunidade de a dominação (também económica) se exercer que tem de ser identificada e enfrentada. Ignorá-la é deveras preocupante. É preciso perceber que não é a automação que determina a extinção dos postos de trabalho; é mesmo a inconveniência destes para quem os explora e pode, através da automação, finalmente dispensá-los (sobretudo os setores menos qualificados). Num sistema económico diferente, a automação não implica as mesmas consequências.
3/ A equivalência entre União Europeia e imperialismo é forçada. Na sua origem não foi isso, em muitos aspectos e durante boa parte da sua história, a UE foi diferente. Há um deriva da UE nos últimos 25 anos, que fez da exclusão uma forma de integração forçada arruinando o modelo de desenvolvimento europeu, assente num pilar social protagonizado pelo Estado social de cada estado membro. Não sei pela parte do João Rodrigues, mas pela nossa parte quando falamos das gerações mais qualificadas que Portugal alguma vez teve tal deve-se ao investimento na formação em boa parte suportado pela UE. Contudo, este ponto daria uma discussão à parte mais aprofundada.
4/ Se há realidade histórica conhecida dos trabalhadores é que numa sociedade onde se trabalha sob exploração não se trabalha por essas coisas que valorizamos e porque nos batemos — inclusão e dignidade, criação de comunidade, confiança, etc. Trabalha-se para garantir um rendimento de sobrevivência, trabalha-se para não ir para o desemprego, trabalha-se para proveito de outros. O pleno emprego, numa sociedade baseada na exploração do trabalho, é simplesmente o menos mau para os trabalhadores. Se há uma realidade histórica conhecida dos trabalhadores é que o trabalho que gera inclusão, dignidade, criação de comunidade, confiança deve estar enraizado nessas mesmas razões e não em matar a fome. Portanto, se há ideal a ser perseguido pode bem ser o do pleno emprego — e do emprego com qualidade, como é dito no nosso artigo — mas desligando o maior dispositivo de dominação que a história da humanidade conhece… a ligação da subsistência, da necessidade, em suma, do rendimento ao trabalho. Em termos de sentido histórico há de facto muito a esclarecer, mas é conceptualmente que as distinções não estão suficientemente apreendidas… o rendimento responde a necessidades (básicas, importantes, fúteis, artificias, etc, mas necessidades); o trabalho realiza. A realização sob o jugo da necessidade é sempre uma heteronomia e não uma autonomia.
5/ Na base do Estado social está o emprego, é certo. Mas antes de mais deve estar o bom emprego. Por outro lado, para a base do seu financiamento deve estar mais do que o emprego, outras fontes de rendimento e riqueza que atualmente se escusam deverão ser sujeitas a essa contribuição social. O Estado social é a organização colectiva de aspectos tão essenciais à comunidade que garanta a todos um ensino público, uma saúde pública, a satisfação de necessidades básicas. É neste quadro que o RBI deve ser pensado como uma política pública do Estado Social. Naturalmente, há outras visões do RBI, que conflituam com o Estado Social, e que procuram levá-lo para o mercado. Estas devem ser combatidas, e não serão menos combatidas por quem se bate por um RBI emancipador. É que neste caso estamos a bater-nos por uma concepção de Estado Social mais amplo — que reconhece o direito ao rendimento e promove a desmercadorização do trabalho.
6/ O RBI tem uma história libertária, mas também comunitarista e não pode ser defendido emancipatoriamente se concebido apenas como uma política de atribuição de rendimento, muito menos de baixo rendimento. As pessoas precisam de ser activos sociais e precisam de ter tempo livre. A luta política por que se bate um RBI emacipatório é desligando rendimento e trabalho, assegurando aquele e desmercadorizando este, acabar com a escassez que a exploração do trabalho sempre implicou, libertar uma abundância do trabalho realizador — ser um activo social, inclusivo, criador de comunidade, e, naturalmente, proporcionar a sua justa distribuição. Como compete a um Estado social bem compreendido.
Para rematar convém focar o essencial. Estes debates são de salutar e querem-se vivos, mas a sua disputa não se pode sobrepor ao fim último que nos move a todos: a luta contra os profundos mecanismos de desigualdade e as formas de exploração laboral que dominam nas sociedades e nas economias contemporâneas.
André Barata
Renato Carmo
(Resposta ao post "Uma péssima ideia", de João Rodrigues, publicado no blog Ladrões de Bicicletas, http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2017/04/uma-pessima-ideia.html)