1/ A expressão de opinião ou é incondicionada ou não é verdadeiramente livre. Impor a realização do contraditório a quem queira exprimir uma opinião é uma forma de a condicionar, fragilizando a liberdade de expressão apesar da aparência inversa. Levar a sério a liberdade de expressão significa não lhe impor nenhum outro condicionamento além dos limites impostos pela lei.
2/ Os limites que a lei deve estabelecer são de dois tipos. Um é formal e simples de entender: a liberdade de expressão deve sempre ter por limite aquilo que a ponha em causa. O outro tipo de limite é um pouco mais complexo: a liberdade de expressão deve parar onde conflituar com outros direitos protegidos pela lei. É mais complexo porque o conjunto desses outros direitos protegidos pela lei evolui historicamente, reflectindo-se, portanto, numa história dos limites da liberdade de expressão. Assim, a liberdade de expressão nunca é absoluta. O que não significa que, dentro dos limites estabelecidos, deva ser condicionada.
3/ A protecção da liberdade de expressão deve ser uma prática cidadã quotidiana, na qual cada um de nós tem o dever de proteger o direito do outro à opinião. Mesmo não sendo um dever legal não deixa de ser um dever cívico, e a gravidade de faltar à protecção da opinião alheia é sempre maior do que a gravidade do conteúdo expresso nessa opinião, desde que contido nos limites que a lei prescreve.
4/ Estes limites não devem excluir a liberdade de ser não violentamente ofensivo, um mal menor que tem de ser admitido a partir do momento que se perceba que dizer a verdade, ou tentar fazer-lhe uma aproximação, pode ofender. A não ser, claro, se a ofensa for meio ou pretexto para ferir ou pôr outros em perigo, caso então injustificável ao abrigo da liberdade de expressão. Fora isso, a ofensa não violenta, até contra os limites da liberdade de expressão, deve estar dentro do perímetro da liberdade de expressão.
5/ Isto não significa que haja uma incompatibilidade entre liberdade de expressão e o dever público de linguagem politicamente correcta, desde que correctamente entendido. Este é um dever que resulta da livre escolha de uma sociedade fazer uso nas suas expressões institucionais — como no ensino, comunicação das instituições públicas, etc. — de uma linguagem inclusiva, o que pressupõe uma escolha por não usar linguagem discriminatória e excludente para com os seus membros. É uma escolha por não fazer todo o uso possível da liberdade de expressão, mas daí não resulta qualquer contradição, como tantas vezes insistem os defensores do politicamente incorrecto; a ponto de alguns defensores do politicamente correcto irem atrás do engodo. Um manual escolar e os modos de expressão de um professor diante de alunos devem conter-se dentro de uma linguagem inclusiva, precisamente para melhor capacitar pessoas em formação para a liberdade de expressão; o tratamento linguístico de funcionários públicos para com cidadãos deve seguir preceitos de inclusividade precisamente para não incapacitar minorias para a liberdade de expressão. O que implica — não vale a pena eufemizar — uma dose maior ou menor de vigilância da linguagem.
6/ Mas este não é um dever extensível à produção literária, artística, etc., ou ao debate político, intelectual, filosófico, científico, etc. Aí poderão estar em causa outras vigilâncias, estilísticas, retóricas, metodológicas, etc., todas livremente escolhidas consoante os âmbitos em que se inscrevem. Ou não e, então, a liberdade de expressão regular-se-á somente pelos limites impostos pela lei. Pelo contrário, um entendimento incorrecto do politicamente correcto consistiria em interpretá-lo como uma obrigação generalizável a toda a sociedade e a todas as formas de expressão. E esta foi não poucas vezes uma tentação, como o mostraram os totalitarismos. Por isso, a vigilância da linguagem precisa de uma vigilância crítica ainda mais apertada do que aquela promove.
7/ O debate crítico é, por essência, um debate de carácter público na medida em que exige à opinião a apresentação de razões que a sustentem, independentemente de quem a sustenta. É por isso que os cientistas recorrem à submissão anónima para avaliar as suas realizações. Não tanto por uma desconfiança de favorecimento e por uma exigência de tratamento igual, como quando representamos a deusa da justiça de olhos vendados, mas porque o seu edifício de saber não deve ter por blocos de construção nada mais senão razões sem dono. Como muito bem notou John Stuart Mill, as nossas opiniões nunca são apenas nossas porque ter razão não é um assunto particular, mas que diz respeito a todos.
8/ A liberdade da opinião, que pode ofender convicções religiosas ou simplesmente o nosso narcisismo de espécie, teria sido imprescindível para que teorias como o heliocentrismo ou a teoria da evolução pudessem ser afirmadas sem medo das consequências. É preciso perceber que conhecimento e ciência se produzem contra as evidências do senso comum e, por isso, não mantêm uma relação pacífica com maiorias. Se a ciência usa instrumentos finos de observação e desenvolve métodos experimentais em condições muito controladas, é porque se faz de pequenas evidências, na realidade, inevidências para o senso-comum. Por isso, pôr em causa, ou condicionar, a liberdade de expressão numa universidade, mesmo que perturbe e ofenda, é também pôr em causa, ou condicionar, a plena assunção da própria universidade como lugar por excelência da criação de saber e descoberta de verdade. Na universidade, a formação antes tutelada, passa a formação autorresponsabilizada. Mais do que em qualquer outra dimensão da esfera pública, não é aceitável outro debate senão o debate radicalmente público, sem premissas ou passos ocultos, sem constrangimentos à emergência de razões.
9/ A universidade pública, e por ser pública, deve estar especialmente responsabilizada por respeitar escrupulosamente o direito à livre opinião, bem como, pela sua missão enquanto universidade, especialmente disponível a acolher e a interpretar a liberdade de expressão na maior latitude possível. Não deve, por isso, hospedar práticas de inspecção prévia das iniciativas de debate ou conferência. A própria ideia de autorização tem algo de nocivo em iniciativas que, numa universidade, devem, numa larga latitude, ser apenas comunicadas, e apenas com o propósito de as conciliar com o normal funcionamento da instituição. A autonomia universitária não deve permitir-se outra interpretação e a tutela deve fazê-lo saber em toda a rede de ensino superior público.
10/ Se o destino da liberdade de expressão e da universidade estão profundamente ligados, ambos estão ligados também, e demasiado para que não o notemos, à dignidade intelectual humana. Sócrates, o filósofo grego, quando lhe propuseram clemência se se calasse, recusou-a e, por integridade intelectual, tomou a cicuta pela sua própria mão. Nenhum pensador que se leve a sério se dispensa desta dignidade da inteligência, de ser exclusivamente conduzido por razões, sejam quais forem as consequências a que elas o conduzam.
(Publicado no Jornal Económico, 23/03/2017, http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/a-universidade-e-a-liberdade-de-expressao-136785)